Transição socialista a partir de condições determinadas

Um dos problemas do debate sobre transição socialista é ficar só fazendo análise textual do que disse Marx e Engels.

Por Jones Manoel*Foto: O comitê executivo do Comecon em sessão

Um dos problemas do debate sobre transição socialista é ficar só fazendo análise textual do que disse Marx e Engels. Por exemplo, acabei de ler um escrito do camarada Warlen Nunes* sobre teoria da transição socialista. O escrito é interessante, sem dúvidas. Mas o único debate possível a partir desse escrito é se a exegese de Marx foi bem-feita ou não. Não existe referência a transição socialista como processo histórico-concreto real, pensando a partir de condições determinadas. Explico a partir de dois exemplos. Um histórico e outro hipotético.

Cuba, a partir da parceria com a URSS, conseguiu realizar uma planificação econômica que restringiu ao mínimo o espaço para relações mercantis simples e complexas e a ação da lei do valor. Com o fim do “campo socialista” e da própria URSS, Cuba que, por exemplo, não produzia na época todo petróleo que precisava (não tenho esse dado de cabeça hoje) teve que resolver esse problema. Em um mundo capitalista, para comprar petróleo, Cuba precisava de dólares. Para obter dólares, Cuba precisava ter algo de interesse do mercado mundial para fazer negócio. Esse algo foi o turismo, fonte de dólares e elemento para obtenção de divisas para comprar petróleo. Essa situação, sem dúvidas, fez crescer novamente relações mercantis simples e complexas, reaparecer de forma embrionária relações capitalistas e regredir o papel da planificação como elemento regulador da produção e distribuição da riqueza.

Em uma situação como essa, não me interessa especular em abstrato se Cuba restaurou ou não o capitalismo com o fim da URSS. Prefiro debater como um país cercado e atacado pelo imperialismo vai ter acesso ao petróleo sem colocar em risco os fundamentos do projeto revolucionário. Agora vamos pensar no Brasil. Imagine que começa a Revolução Brasileira amanhã. Tomamos o poder. Uma das principais tarefas é construir um complexo nacional de comunicação, processamento de dados e um sistema de satélites. Não é possível esperar produzir tecnologia no âmbito do socialismo para realizar essa tarefa. Será questão de sobrevivência imediata da Revolução garantir que as comunicações que influem no plano de defesa nacional contra o imperialismo não sejam processadas por empresas e infraestrutura estadunidense.

Qual é o caminho mais óbvio para realizar essa tarefa? Uma parceria comercial com a China com intensa e ampla transferência tecnológica, Joint ventures e intercâmbio acadêmico. A China, sabemos, não fará isso de graça. Vai negociar. Essa negociação vai influenciar em vários campos da economia, como na agricultura e mineração, retardando ou restringindo até certo ponto transformações importantes na dinâmica produtiva.

Imagina alguém gritar sobre “revolução traída” ou “capitalismo de estado” frente ao um gigantesco acordo de transferência tecnológica indispensável para defesa militar, política e ideológica da revolução. Penso a Revolução Brasileira como as tarefas concretas da classe trabalhadora e seus aliados para superar a dependência (dependência, na periferia do sistema, é outro nome para capitalismo!), garantir a defesa nacional, o internacionalismo proletário e enfrentar o imperialismo. Estou mais preocupado com o desafio de criar uma economia planificada no Brasil do que com debates de hermenêutica sobre os Grundrisse de Marx. Inclusive, os escritos de Marx, Engels, Lênin e todos os clássicos, devem ser guias para ação, bases para pensar a estratégia de tomada do poder e construção do socialismo e não elementos de escapismo da realidade, ignorando as condições materiais e históricas da luta de classes e superação do capitalismo.

*Jones Manoel é é historiador, professor de História, Mestre em Serviço Social (ambos pelo UFPE), educador popular, colunista de diversos veículos de comunicação (como Revista Opera, Lavrapalavra, Jornal O poder Popular, site do PCB, Blog da Boitempo) e desenvolve trabalhos de formação política e teórica no YouTube (canal Jones Manoel) e na podsfera (Revolushow).

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