Crise no Cazaquistão: a OTAN não dorme!

Por Hugo Albuquerque*

O Cazaquistão arde numa revolta contra o governo nacionalista. A ex-república soviética é um aliado chave de Moscou, com seu vasto território estratégico, é sede do programa espacial russo e cheio de riquezas naturais, e com 1/5 de população russa.

Naturalmente, o Cazaquistão tem problemas. Da sua fundação com o fim da URSS até bem pouco, o país esteve sob o comando de Nursultan Nazarbayev, mas seus aliados persistem no poder na forma do partido ironicamente chamado Nur Otan (Pátria Radiante).

Nazarbayev foi um quadro do Partido Comunista durante décadas, se equilibrando no poder com uma habilidade incomum. Com o fim da URSS, ele tratou de promover o nacionalismo local, mas manteve vínculos fraternais com os russos.

O que hoje é o Cazaquistão só surge realmente com o fim da URSS. Ele não foi um país antes, mas uma zona ocupada pelos cazaques, um povo turco, que viviam nomadicamente. Eles vieram com as hordas mongóis, tomando o lugar de tribos indo-arianas.

Desde o seu nascedouro, o Império Russo coloniza a região. E, via de regra, a relação entre russos e cazaques sempre foi boa. O país é fronteiriço com a China, mais precisamente com a província do Xinjiang.

O Cazaquistão é a segunda ou terceira economia pós-soviética, a depender do critério. Excetuando as repúblicas bálticas, ela é das mais ricas, estando só um pouco atrás da per capta russa (e sim, isso está acima do Brasil ou mesmo do Chile ou Argentina).

Apesar da parceria com a Rússia, o fim da URSS foi particularmente bom para o Cazaquistão, que mais do que viu seu PIB mais do que dobrar. A história de sucesso se repete, no entanto, na Ásia Central. O crescimento chinês ajuda a entender isso.

O ajuntamento de poder cazaque não é muito diferente do russo. O partido governista é o que se chama big tent, congregando de tudo, mas se usando de elementos nacionalistas de direita, social-conservadorismo e de religião.

Tokayev, o atual líder, é um diplomata de carreira, treinado na antiga URSS, mas com passagens pela China, e esse último detalhe é muito importante. O Cazaquistão, até por sua localização geográfica, será chave na Nova Rota da Seda.

Agora, do mesmo modo que o Cazaquistão é mais rico hoje do que há 30 anos, quando era um lugar esquecido da URSS, ele também é mais desigual (ainda que menos que a Rússia e ex-repúblicas soviéticas) e, sim, sua passagem ao capitalismo destruiu a participação popular.

Embora haja um gigantesco partido governista, ele não é uma organização socialista de nenhum tipo, nem tem o mesmo nível de participação social. A medida de aumento do gás, apenas deflagrou uma série de insatisfações que, no entanto, foram catalisadas de fora.

Então, se você espera uma resposta fácil, não vai encontrar. A reação exasperada da Rússia e seus aliados tem razão de ser: enquanto a Otan promove uma blitz em direção da Ucrânia, ameaçando instalar armas nucleares, agentes ocidentais insuflam as massas cazaques.

Trata-se de um movimento de xadrez, com Moscou bloqueando a movimentação da Otan na Ucrânia, mas ela respondendo no outro flanco. Os dois movimentos não miram apenas a Rússia, no primeiro caso, há uma reprimenda contra a Alemanha e no segundo contra a China.

Os dois casos afetam a Turquia, parceira estratégica da Alemanha, que no entanto não deseja o Nordstream, mas tampouco deseja ver o Cazaquistão cair em mãos ocidentais, uma vez que Erdogan deseja ele mesmo pôr as mãos lá um dia.

Essa outra crise no espaço pós-soviético alude a outro problema: a incompetência dos sistemas de partidos nacionalistas e seus capitalismos de Estado resistirem ao Imperialismo, a começar por eles falharem na sua lição de casa.

Em meio à tensão entre o nacional-conservadorismo e a ilusão das classes médias com o liberalismo ocidental, os países da pós-URSS, inclusive a Rússia, podem colapsar. A China terá, tão logo, de exportar seu modelo talvez por questões de segurança nacional…

*Hugo Albuquerque é publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária, advogado e direitor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia — IHUDD.

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